quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

IT TROVATORE – Liceu, Barcelona, Dezembro de 2009

Il Trovatore (o trovador), de G. Verdi, passa-se em Espanha no Séc. XV. Com um enredo pouco plausível, a ópera é das mais famosas de Verdi e inclui numerosos trechos musicais de grande beleza e elevada exigência para os cantores. Manrico (tenor), um cigano do grupo dos Urgel e o Conde de Luna (barítono), do grupo rival, disputam o amor da mesma mulher, Leonora (soprano), uma dama da corte amante de Manrico. Este foi criado por uma cigana, Azucena (mezzo-soprano) que diz ser sua mãe. A mãe de Azucena fora mandada queimar viva pelo velho conde, por bruxaria e, por vingança, Azucena raptara o filho deste e lançara-o para a fogueira. Só depois reparou que matara o seu próprio filho. O Conde de Luna prende Azucena (que é entretanto reconhecida) e o filho Manrico. Leonora, depois de tentar ir para um convento, para evitar que Manrico seja morto, promete entregar-se ao Conde, envenenando-se previamente. O Conde, quando percebe que foi enganado, manda matar Manrico. Azucena, proclamando que a morte da mãe está vingada, diz-lhe que matou o próprio irmão.



O Liceu é um teatro a que vou sempre com grande entusiasmo porque junta uma sala deslumbrante e das mais modernas da Europa a um público conhecedor, exigente e disciplinado. Apresentou três elencos distintos (!) dos quais tive oportunidade de ver dois.
A encenação, de Gilbert Delfo, é minimalista, pindérica e de gosto discutível. Para além de uns panos que vão mudando ao longo do desenrolar da ópera, quase não há mais nada. Os dois grupos rivais aparecem assinalados com o azul ou o encarnado na roupa ou na cabeça, tal como os panos do palco. Nada disto é, sequer, original, pois há menos de um ano vi a mesma abordagem em I Capuleti e i Montecchi na Royal Opera House, mas de forma muito mais conseguida e numa ópera realmente encenada. Enfim, foi quase uma ópera em versão de concerto. Ainda mais uma nota negativa sobre o início do 3º acto em que ao coro dos guerreiros foi adicionada uma parte coreografada. Com as suas espadas empunhadas, a dançar aquela coreografia de gosto duvidoso, o efeito foi bizarro e pareceu um espectáculo gay.
Como cenicamente não havia nada para ver, toda a atenção recaiu nos cantores.
Sob a direcção de Marco Armiliato, a orquestra e o coro estiveram excelentes, o que muito contribuiu para o sucesso alcançado. O coro tem várias intervenções e esteve sempre ao mais alto nível.
Ferrando, um capitão da guarda do Conde de Luna, foi Paata Burchuladze nas duas récitas. Um baixo georgiano que me habituei a respeitar mas que, nesta ópera, não esteve bem. Emissão irregular, ora muito forte, ora quase inaudível, cenicamente, desinteressante e com vibrato excessivo. Contudo, o registo mais grave continua a manter momentos de elevada qualidade.
O Conde de Luna foi, na primeira récita, Anthony Michaels-Moore. Barítono britânico de excelentes qualidades, timbre belíssimo, voz potente e harmoniosa ao longo de toda a actuação. Cenicamente foi o melhor da noite. Na segunda récita o papel foi interpretado por Vittorio Vitelli (em substituição de Roberto Frontali) que teve uma prestação bem mais fraca. Emissão irregular, com desafinações regulares, potência fraca para a dimensão da sala e cenicamente mau. Teve a ousadia de se fazer aos aplausos (imerecidos) depois da aria do 2º acto, mas em vez destes ouviu umas vaias.
Leonora, na primeira récita, foi Krassimira Stoyanova. Teve dificuldades em acertar-se com a orquestra no início, mas recuperou e revelou uma boa voz, bem projectada, atingindo os agudos aparentemente sem esforço mas nem sempre mantidos com suavidade. Apesar do poderio da voz, faltou a emoção e suavidade requeridas. No final esteve no seu melhor e foi muito aplaudida pelo público. Fiorenza Cedolins foi a protagonista na 2ª récita e impôs-se. Voz mais pequena mas bem projectada, quente e suave, transbordando de emoção e transformando-se ao longo da récita, como o papel exige. Agudos excelentes, sem desafinar nem gritar, tem uma boa figura e teve uma notável presença em palco.
Manrico foi interpretado por Alfred Kim na 1ª récita. Tenor coreano sem grandes capacidades cénicas, cumpriu vocalmente sem brilhar. Agudos um pouco baços e, quando a orquestra soava mais forte, deixava de ouvir-se com clareza. Mas, ainda assim, uma presença agradável. Na 2ª récita tivemos Marco Berti, que tem uma voz muito potente e bem timbrada, mas com irregularidades. Os agudos são mantidos com pujança mas, por vezes, tornam-se estridentes. Pouca emoção, cenicamente um desastre, apenas esteve bem nos diálogos com Azucena. A figura não ajuda e na caballeta “Di quella pira”esteve muito aquém do que se esperaria. O público, não deixou de o demonstrar, com algumas vaias entre os sempre presentes aplausos.
Azucena, um dos grandes papeis de mezzo de Verdi e o meu favorito nesta ópera, foi interpretado por Irina Mishura na 1ª récita. Teve uma presença aceitável em palco (apesar de a encenação não ajudar nada) mas a voz esteve aquém do desejável. Emissão irregular, com momentos muito fortes mas outros, inexplicavelmente, quase inaudíveis, timbre feio, vibrato excessivo, mais evidente no registo mais grave. Nunca conseguiu transmitir a emotividade inerente à personagem. Na 2ª récita Luciana D’Intino foi a melhor em palco tanto cénica como vocalmente. O contraste com a anterior foi marcante! Possuidora de uma excelente técnica, a afinação foi perfeita, a voz potente, o registo grave fez tremer o palco, sem vibrato e com um belo timbre. O diálogo com Manrico no 2º acto valeu a récita. A minha referência para a Azucena é Fiorenza Cossotto, a primeira que vi e ouvi em São Carlos e, até àdata, sem rival. Contudo, Luciana D’Intino esteve perto e, se a encenação o permitisse, talvez o espectáculo oferecido fosse mais rico.
Uma última palavra sobre o público de Barcelona. Apesar de estarmos num país latino, é um prazer acrescido assistir à ópera no Liceu. As tosses são escassas mas se mais numerosas há sempre quem o reprima vocalmente. Ouve-se a música até ao fim e quando os cantores ficam aquém do esperado, as reacções negativas não se fazem esperar nem são parcas, como também são exuberantes quando, pelo contrário, se assistem aqueles momentos mágicos que sempre se esperam.




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