sábado, 19 de março de 2011

LUCIA DI LAMMERMOOR, METropolitan Opera, Nova Iorque e Met Live em HD, Fundação Gulbenkian, Março de 2011


(Review in English below)

Lucia di Lammermoor é uma ópera de Gaetano Donizetti com libretto de Salvatore Cammarano baseado na novela de Sir Walter Scott, The Bride of Lammermoor.

A acção passa-se na Escócia no final do Século XVI. Lord Henry Ashton (Enrico) quer que a sua irmã Lucy (Lucia) se case com Arthur Bucklaw (Arturo) para fortalecer politicamente a sua (má) situação familiar. Mas ela está apaixonada pelo maior inimigo da família, Sir Edgar Ravenswood (Edgardo). Edgardo tem que ir a França procurar aliados para a Escócia. A pedido de Lucia o seu amor permanece secreto e trocam anéis. Enrico intercepta e forja uma carta de Edgardo para provar a Lucia a sua infidelidade e a convencer a casar com Arturo. Destruída pela situação, Lucia acaba por concordar e, quando a cerimónia está prestes a iniciar-se, surge Edgardo reafirmando o seu amor, mas o contrato nupcial já está assinado. Enrico desafia Edgardo para um duelo. A cerimónia do casamento é interrompida com a notícia de que Lucia assassinou Arturo. Ela surge ensanguentada e com um punhal na mão, num estado de loucura, imaginando que se está a casar com Edgardo e, pouco depois, morre. Edgardo, ao saber da notícia, apunhala-se.

A obra “belcantista” é um dos expoentes máximos do romantismo operático italiano, contém trechos notáveis e, se bem interpretada (exige um soprano e um tenor de superior qualidade), proporciona um espectáculo emocionante. A coloratura é usada em todo o seu esplendor na transmissão dos estados de alma da protagonista e alguns instrumentos, como a harpa e a flauta, também evocam a sua nostalgia e dor. Toda a ópera está recheada de trechos musicais marcantes, merecendo relevo, entre outros, o dueto entre Lucia e Edgardo no final do 1º Acto Verranno a te sull’aure, o sexteto do final do 2º Acto Chi mi frena, a famosíssima e longa cena da loucura de Lucia no 3º Acto Il dolce suono e a ária final de Edgardo Tu che a Dio spiegasti. Um deleite para os apreciadores do estilo, entre os quais me incluo.


Encontro-me numa situação única e que ambicionava desde o início da temporada. Assisti à representação desta ópera ao vivo no Met (num bom lugar na plateia) e, dias depois, em HD no Met Live. A minha curiosidade sobre o impacto da transmissão em HD era grande e, de facto, as duas realidades são muito distintas.
Apesar de, nas duas récitas, os cantores principais serem de grande qualidade (e foram os mesmos), devo referir que, em HD, são beneficiados. Todos me pareceram vocalmente mais poderosos na Gulbenkian do que no Met, embora em ambas as ocasiões as actuações tenham sido notáveis.

Não senti o efeito perverso da distorção da voz quando há canto com amplificação sonora (que deveria ser proibida) mas uma situação em que todos parecem cantar com potência superior àquela que se ouve ao vivo. (Depois de ter passado por esta experiência, gostaria muito de ter visto a Armida nestas condições porque aí houve grande heterogeneidade nos cantores e teria sido interessante constatar até que ponto o HD consegue mascarar as fragilidades vocais).

Cenicamente, como seria de esperar, a transmissão em HD proporciona imagens muito mais expressivas e pormenorizadas no plano individual (chega a ser impiedosa com algumas expressões que os artistas possivelmente não desejariam) mas, perde-se por completo a apreciação do todo durante o espectáculo.


A encenação de Mary Zimmerman é de belo efeito e muito do meu agrado. Li algumas críticas às suas opções mas, pessoalmente, gostei bastante. As cenas no exterior foram muito bem conseguidas, num ambiente frequentemente soturno bem apropriado e, a cena da loucura, com a grande escadaria no centro do palco, também me pareceu uma boa e funcional opção cénica e estética. Os fantasmas em palco foram outra opção interessante mas não consensual.


O maestro Patrick Summers cumpriu com competência a direcção musical da obra. O Coro e a Orquestra do Met foram autoritários, como sempre.

Natalie Dessay é uma artista que, com uma figura franzina, associa uma capacidade vocal extraordinária a qualidades de representação muito invulgares num cantor de ópera. É detentora de um soprano lírico cheio e ágil, capaz de manter elevada qualidade tanto no registo médio como no agudo. Vi-a ao vivo em La Sonnambula no ano passado e fiquei assaz impressionado.

Como Lucia também gostei muito da sua actuação. O timbre é de invulgar beleza e a coloratura notável. Esteve soberba no belo dueto final do 2º acto e, sobretudo, na cena da loucura, sem harmónica de vidro e, numa parte, a capella, sem flauta. Aqui deu-nos uma interpretação superior e esteve cenicamente excelente, entregando-se totalmente à personagem, como é a regra das suas interpretações. É um privilégio ter a possibilidade de assistir às actuações de Natalie Dessay.






Edgardo foi interpretado pelo jovem tenor maltês Joseph Calleja. Sou um admirador confesso deste intérprete, como já referi aqui. O timbre é muito próprio, a afinação irrepreensível e a potência vocal avassaladora. O registo médio é autoritário e a segurança nas notas mais agudas impressiona pela qualidade e aparente facilidade com que são emitidas. Foi um amante apaixonado de Lucia e, embora tenha estado sempre bem, o dueto que encerra o 1º Acto e a cena final no cemitério foram assinaláveis. Neste blogue, Joseph Calleja tem detractores, mas eu não sou, de todo, um deles.

Enrico, o vilão da ópera, irmão de Lucia, foi o barítono francês Ludovic Tézier. Esteve muito bem vocalmente. O barítono foi de audição agradável, bem timbrado e expressivo. Cenicamente foi excelente no papel pérfido que desempenha. Devo assinalar que em HD este cantor foi, de longe, o mais beneficiado. A voz soou muito mais poderosa e o pormenor da filmagem ajudou muito na apreciação da personagem.

Kwangchul Youn, baixo sul coreano, foi um Raimondo de voz encompada e imponente, muito bom vocalmente e aceitável cenicamente.








A terminar, devo referir que tive também a oportunidade de ver ao vivo esta produção (que existe em DVD) há dois anos com Netrebko, Beczala, Kwiecien e Abdrazakov (!) e a comparação é inevitável. Apesar de ter gostado muito de rever o espectáculo, confesso que preferi a récita de há dois anos. A Netrebko fez também uma Lucia muito marcante, o Beczala foi arrasador e os restantes estiveram ao seu melhor nível (o que quer dizer, dificilmente superáveis).


De facto, mesmo com dois elencos de excelência, não há amor como o primeiro!

*****



Lucia di Lammermoor, METropolitan Opera, New York, and Met Live in HD, Gulbenkian Foundation, March 2011

Lucia di Lammermoor is an opera by Gaetano Donizetti with libretto by Salvatore Cammarano based on Sir Walter Scott's novel, The Bride of Lammermoor.

The action is set in Scotland at the end of the sixteenth century. Lord Henry Ashton (Enrico) wants his sister Lucy (Lucia) to marry Arthur Bucklaw (Arturo) to strengthen his political (bad) family situation. But she is in love with the greatest enemy of the family, Sir Edgar Ravenswood (Edgardo). Edgardo has to go to France to seek allies to Scotland. At the request of Lucia their love remains a secret and they exchange rings. Enrico intercepts and forges a letter from Edgardo to prove Lucia of his infidelity and to persuade her to marry Arturo. Devastated, Lucia agrees, and when the ceremony is about to begin, Edgardo appears, reaffirming his love, but the marriage contract is already signed. Enrico challenges Edgardo to a duel. The wedding ceremony is interrupted with the news that Lucia killed Arturo. She comes up with a bloody knife in hand, in a state of madness, imagining that she is about to marry Edgardo and she dies soon after this scene. Edgardo, on learning the news, stabs himself.

This belcanto piece of work is one of the foremost exponents of Italian operatic romanticism, contains remarkable musical excerpts and, if played well (it requires a soprano and a tenor of superior quality), provides an exciting performance. The coloratura is used at its full splendor in the transmission of states of mind of the protagonist, and some instruments like the harp and flute, also evoke her nostalgia and pain. The whole opera is full of striking pieces of music including, among others, the duet between Lucia and Edgardo at the end of Act 1 of the Verranno a te sull'aure, the sextet at the end of Act 2 of Chi mi frena, the long and very famous mad scene of Lucia at the 3rd Act Il dolce suono and the  final aria of Edgardo Tu che a Dio spiegasti. It is a sweet for lovers of this style, among whom I include myself.

I am in a unique situation because I saw this opera live at the Met (in a good spot in the audience) and, days later, at the Met Live in HD. My curiosity about the impact of HD broadcast was big and in fact the two are very different realities.
Although in the two performances the principal singers were of high quality (and were the same), I should mention that in HD all were benefited. They seemed more vocally powerful in HD broadcast than live at the Met, though on both occasions the performances have been remarkable.

I did not feel the perverse effect of distorting the voice when there is singing with amplification (that should be banned). But in HD all seemed to sing with greater power than that which is heard live. (Having gone through this experience, I would love to have seen Armida in these conditions because in that performance there was great heterogeneity among the singers and would have been interesting to see how much the HD can mask vocal weaknesses).

Artistically, as expected, the HD broadcast images provide much more expressiveness and detailed individually, but the overall appreciation of the staging is lost.

The staging by Mary Zimmerman had a beautiful effect and I liked it very much. I read some criticism of her options but, personally, I really liked them. The scenes were of good effect in an adequate and often grim setting, and the mad scene, with the grand staircase in the middle of the stage, also seemed a good functional scenic option. The ghosts on the stage were another interesting option.

Conductor Patrick Summers competently fulfilled the musical direction of the piece. The Choir and Orchestra of the Met were excellent, as always.

Natalie Dessay is an artist who, despite a fragile figure, associates an extraordinary vocal ability to a fabulous artistic performance on stage which is unusual among opera singers. She has a full and agile lyric soprano, able to maintain high quality in both medium and top notes. I saw her live in La Sonnambula last year and I was quite impressed.

As Lucia I also liked her performance. The timbre is of unusual beauty and the coloratura is noticeable. She was superb in the beautiful duet end of Act 2 and, specifically, in the mad scene Artistically she was excellent, as is the rule of her interpretations. It is a privilege to have the possibility to see Natalie Dessay.

Edgardo was interpreted by the young Maltese tenor Joseph Calleja. I am an admirer of this artist, as I mentioned here. The timbre is very personal, the tone impeccable, and vocal power is overwhelming. The medium register is superb and top notes impress by the quality and apparent ease with which they are sung. He was a passionate lover of Lucia and although he has always been well, the duet that ends Act 1, and the final scene at the graveyard were breathtaking. In this blog, Joseph Calleja has detractors, but I'm not one of them.

Enrico, the villain of this opera, brother of Lucia, was interpreted by French baritone Ludovic Tézier. He had a good vocal performance. His baritone was expressive and with nice timbre. Artistically he was excellent as the bad guy. I must stress that this singer looked and sound much better in the HD transmission than live at the Met.

Kwangchul Youn, South Korean bass, was an authoritative Raimondo, very good vocally and artistically acceptable.

Finally, I should mention that I also had the opportunity to see this production live (which exists also on DVD) two years ago with Netrebko, Beczala, Kwiecien and Abdrazakov (!) and the comparison is inevitable. Although I liked to review the opera, I confess that I preferred the performance of two years ago. Netrebko’s Lucia was also very striking, Beczala was fantastic and the other soloists were at their best (which is to say, excellent).

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9 comentários:

  1. Caro FanaticoUm,

    Obrigado pela excelente crítica e, acima de tudo, pela comparação entre a récita ao vivo e a do Metlive. Realmente é impossível conseguir-se o som brutal do Metlive numa casa de ópera, possivelmente nem mesmo se estivermos no palco.

    Natalie Dessay demorou a aquecer e fiquei particularmente incomodado com os seus agudos que me saíram gritados até ao dueto do final do primeiro acto que foi realmente muito bom. A partir daí esteve muito bem. Gostei muito da cena da loucura, que cenica quer vocalmente.

    Aceito a sua provocação em relação ao Calleja mas... mantenho a minha postura. A capacidade deste cantor em BALIR é excepcional!!! E a Lucia é uma ópera que ainda torna mais dificil não se notar. Esteve emotivo nos primeiros dois actos mas o "Tombe degli avi miei... Fra poco a me ricovero" soou extremamente "seco", com pouco lirismo e cenicamente pobre. Morrer até morreu em estilo mas, no geral, não foi mais do que agradável. Não sei como é que o público do Met o aplaudiu tanto... Mas enfim...

    Ludovic Tézier é espectacular. Excelente presença em palco, seguro, cenicamente credível e uma voz de se lhe tirar o chapéu.

    Kwanchoul Youn é um baixo muito bom, como já tenho referido neste blog. O que lamento é que a suas expressões faciais (tão bem oferecidas pelo Metlive) sejam pouco expressivas.

    Conheço a gravação de DVD e recomendo-a, especialmente pela Netrebko e pelo Beczala que são colossais.

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  2. Prezados,

    Antes de mais nada, é um prazer ter encontrado este blog. Parabens aqueles que o escrevem, dividindo suas impressões conosco.

    Em primeiro lugar, gostaria de dizer que acho o Met Live algo fantástico. A maioria de nós não tem a menor condição de ir a Nova Iorque uma vez por ano, ainda mais uma vez por mês para ver récitas da qualidade das apresentadas. Mesmo que lançadas em vídeo, em casa o aparelho de som e a tela dificilmente serão a mesma coisa e as interrupções dométicas tambem atrapalham.

    Um grande lance, que agrega muito valor a experiência é a sacada de colocar um apresentador, entrevistar os cantores nos entreatos e mostrar lances dos bastidores. Hoje vimos que haviam 90 pessoas no palco para montar o cenário do segundo ato.

    Comparando as trasmissões atuais com as gravações do Met mais antigas que existem em DVD, percebe-se uma grande evolução na escolha dos enquadramentos e na qualidade da imagem.

    Sobre a récita em si, achei-a fantástica. Tambem achei a Dessay esquisita no início, mas o dueto com o barítono, o ensemble do 2o. ato e a mad scene foram fantásticas.

    Para mim, o tenor foi fantástico. A voz dele é enorme e ele esteve muito bem cenicamente. Os unicos atores que poderiam ter balido ali eram os cachorros do primeiro ato!! :)

    A montagem em si é muito bonita. Eu gostei do lance dos fantasmas. Principalmente na cena da morte, ajuda bastante no entendimento. Antes de se unir na morte, Lucia e Edgardo se uniram na loucura.

    Infelizmente, aqui no Brasil a apresentação de Conte Ory não será ao vivo (será na semana deestréia do novo desenho do Carlos Santana, Rio), mas dia 19 de abril estarei presente.

    Um abraço,

    Eduardo

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  3. @ wagner_fanatic,

    Todos nós temos preferências e, como sabe, há um pequeno grupo de cantores em relação aos quais eu admito que, à partida, já vou predisposto a gostar. Natalie Dessay integra, para mim, esse muito pequeno grupo. Mas devo dizer que não fiz nenhum esforço de benevolência para considerar que esta sua actuação foi de alto nível.

    Em relação a Calleja, não foi uma provocação, mas sim uma constatação. Quem nos dera ter nem que fosse só um par de cabras a balir assim aqui no nosso São Carlos! Por favor...


    @Eduardo Vieira,

    Obrigado pelo seu comentário. Nós aqui em Portugal também tivemos nesta temporada (a primeira em que nos foi dada a possibilidade de assistir às transmissões do Met Live) espectáculos em diferido (e vamos ter ainda a Valquiria). A qualidade mantém-se e não fique triste por não ter o Conde de Ory em directo. Não ter acesso é que seria uma pena. E, particularmente nessa ópera, a manterem-se os cantores principais (Florez, DiDonato e Damrau), antecipo uma récita fabulosa.

    Concordo totalmente consigo. O Met Live é uma mais valia de excepção para podermos apreciar ao que de melhor se vai fazendo actualmente no que à ópera respeita.

    Um abraço de Portugal

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  4. Fanático Um,

    Obrigado pela resposta.

    Em maio, irei a Paris e a Viena e assistirei récitas de Tosca (02/05) no Bastille e Don Giovanni (04/05) no Staatsoper. Se vocês não tiverem alguem que presente, posso tentar escrever uma crônica sobre cada uma das récitas.

    Sds,

    Eduardo

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  5. Lendo a sua comparação, parece que a crítica do NY Times faz todo o sentido: uma nova produção destinada ao cinema :-)
    Bem, ficam os DVD!

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  6. Caro Eduardo Vieira,
    Penso que nenhum dos três colaboradores habituais deste blogue irá ver essas produções.
    Será uma mais valia para nós ter as suas crónicas sobre os espectáculos que refere.
    Cumprimentos musicais

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  7. Caro FanaticoUm

    Parece que o MetLive, veio confirmar a apreciação que eu já tinha feito da da récita ao vivo no MET.

    Acho que o facto de através dos microfones uniformizarem a intensidade vocal dos cantores, pode ser agradável ao ouvido, mas não deixa de ser "batota". Dou-lhe razão, talvez a Armida seja mais agradável de ouvir no MetLive ou em DVD. Eu gostaria de ouvi-la numa casa de ópera mais pequena. O MET é demasiadamente grande.
    Cumprimentos

    Alberto

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  8. Caro Alberto,

    Tinha toda a razão, no Met Live as vozes soam mais fortes e mais uniformes.
    Mas não há distorção (como se ouve quando cantam ao microfone) e a qualidade é tal que o espectáculo é excelente (não sei se já viu alguma vez, dado viver no Funchal mas, se o não fez, vale a pena experimentar).
    E a Natalie Dessay foi soberba. Uma actiz de mão cheia e um exemplo de entrega total à personagem.

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  9. Caro FanaticoUm

    Não tive ainda oportunidade de assistir ao MetLive da Gulbenkian, Até estava em Lisboa no passado sábado, mas estava já esgotado. Optei pelo Romeu e Julieta da Companhia Nacional de Bailado no Teatro Camões. Foi um bom espectáculo.
    Cumprimentos

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